quinta-feira, 16 de junho de 2016

UM AUTOR MACROCÉFALO

      Na vereda umbrosa vinda ter ao soturno aceiro que rastilhava através do seringal ubérrimo, Torquato de há muito esperava, acocorado, sob crises veementes, num misto de infrenes exortações masculinas e de íntimas revoltas contra o seu vilíssimo plano perpetrado e prestes a ultimar-se. Assemelhava-se a um gato selvagem à espreita da vítima incônscia : carecia de abater o incauto pervagante daquele atalho para cevar a fome sexual de muitos anos na pelanganosa estrutura de uma velha esclerosada, que era monopólio de outrem.


    Amigo leitor, deixemos, por enquanto, o infame Torquato na sua desprezível tocaia, assim poderei fornecer elementos para que se entenda o monstruoso ardil.
    O trecho acima é parte do romance DESERDADOS, escrito por Carlos de Vasconcelos e publicado no ano de 1921, por Leite Ribeiro & Maurilo, Rio de Janeiro. Na verdade, trata-se de uma raridade bibliográfica, o que é uma pena, pois é obra extremamente singular e que, certamente, merece ser conhecida, lida e difundida, não só pela ousadia da linguagem, arrebatamento das ações, assombro e surpresa das imagens, mas também pelo que apresenta de estupenda poesia e chocante tragédia. Dizer que a ação se desenrola na Amazônia não faz do livro algo especial. Entretanto, a forma de dizer constitui-se em rara novidade, chocante beleza, suave e dolorosa poesia. O homem apanhado no seu contato direto com aquele inferno verde, que, aliás , continua infernal. Ali, vamos encontrar o homem matamorfoseado em besta humana, em terrível e sanguinário lobisomem. O homem que mata sem medo, sem remorso, por motivos vis e de pequena fatura.         
    Na cena em destaque, Torquato arma tocaia para assassinar outro seringueiro de nome Juca (Conduru), simplesmente para se apossar sexualmente da companheira do infeliz. Torquato bestializa-se na fome sexual de muitos anos , já que naquele tempo  a presença da mulher na Amazônia era algo raríssimo. E não pense o caro leitor que a mulher desejada, de nome Joana, era nova, bonita de formas, desejável. Não, nada disso. Tratava-se, no caso, de uma velha escrofulosa, esquelética e com maus dentes, sarnosa de timbres e antipática de atitudes.
    Efetivamente, Torquato acerta Juca com um balaço no peito e ele cai da pirambeira que atravessava no meio da mata. Entretanto, quando corre para o sitio da vítima e diz que o companheiro sofrera um acidente fatal, Joana compreendera logo a mentira do assassino, mas temendo-lhe a ferocidade por ânsia erótica e ao mesmo tempo o leilão em que seria posta pelo dono do seringal logo que se divulgasse a notícia da morte do seu amásio, hesitava se devia dar-se ao embusteiro ou qual a maneira mais acerada de agir, sob tão críticas circunstâncias.
    O fato é que Juca mesmo ferido acaba surpreendendo o facínora no momento da danação orgástica e tem início uma luta corporal cuja riqueza de detalhes deixa entrever a maestria do autor , bem como a  estranheza do seu linguajar. 
    Por fim, o sangrento duelo termina com a morte dos contendores que despencam sobre um precipício. É que Conduru e Torquato haviam caído em um socalco do barranco, fisgados, com as facas empunhadas, o braço de um sustendo o  lance brutal do outro que, trespassado, havia também embebido até o cabo o punhal oponente. Joana enlouquecera, transudada em sentinela maldita do crime...
   Observe, paciente leitor, a linguagem ímpar do Sr. Vasconcelos, algo realmente diferente. O inusitado que consegue arrancar de tanta brutalidade e miséria humanas é, de fato, impressionante.  
       Selecionamos outros trechos espetaculares. Mas, por enquanto, fiquemos por aqui. Prometo ao leitor amável continuar em breve.
Um fraterno abraço.



   

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